O MUNDO QUE MORA EM LISBOA

DO MARTIM MONIZ, CORAÇÃO DA MOURARIA, AO LARGO DO INTENDENTE FEZ-SE UM TRILHO QUE É UM NOTÁVEL PEDAÇO DO MUNDO  E ONDE A OMNICULTURALIDADE QUER DITAR AS REGRAS.

Do terraço do Restaurante Topo, ao Centro Comercial Martim Moniz, estica-se a praça do mesmo nome num trajeto que abre no Largo de São Domingos, segue a rota pela Mouraria e, via a Avenida Almirante Reis, desagua num Intendente quase irreconhecível da má-fama de dias idos. Mas há algo mais importante que o roteiro: este é um lugar de omnicultura, um trilho exemplar de como Lisboa também sabe como não seguir exemplos alheios valorizando o que lisboetas e estrangeiros têm em comum ou o que tendo de diferente se pode juntar em perfeita harmonia.

Esta zona específica da cidade, onde os forasteiros se vão tornando vizinhos e até fazem parte do que é trendy, do que é a mistura de culturas sem ghettos ou manifestações de preconceito, não é  exatamente uma questão de integração. É regra da omniculturalidade que nos integremos uns nos outros, por assim dizer, que esse seja o futuro, que entre bares, restaurantes, comércio do mais variado, associações culturais, hotéis e mesmo a construção imobiliária, que este autêntico retrato do mundo melhore a cidade e exalte ao mesmo tempo o turismo e a vida de todos os dias. E do Largo de São Domingos ao Intendente já se receiam os perigos de que como noutros lugares da cidade haja  um forçado abandono da gente jovem e dos demais moradores por conta de bolhas imobiliárias de duvidosa seriedade, prédios empurrados à devolução, outros incaracterísticos ou de intervenções arquitétónicas que, mesmo de bom gosto e bom senso, elevem os preços a patamares insuportáveis que consagrem bairros inteiros a um segmento de endinheirados que prefere o aluguer ou a revenda à vida proveitosa em comunidade.

É certo que Lisboa tem os seus ghettos feitos de gente de fora  que vem para viver do trabalho e que acredita poder encontrar na capital uma cidade que não ostraciza o forasteiro, que antes prefere fazer dele um vizinho, um fornecedor de confiança, uma parte da vida de todos os dias. E que a cidade não remete forçosamente a cultura dos outros para as periferias. É para onde aponta o caminho da omniculturalidade, uma integração de proximidade, uma relação de vizinhança  e a curiosidade pela cultura de cada um que nos leva a querer saber mais do outro, a seguir os pontos em comum e a aprender com as diferenças. A zona do Intendente e Martim Moniz dá-se bem assim e nem quer pensar que alguma má ideia feita de falta de noção estrague o cenário. Até porque o multicultural é uma constatação (a de haver gente de muitos lados num mesmo lugar) mas sem empenho ou ideias não há-de passar de uma curiosidade.

Av. Almirante Reis

Largo do Intendente

Em Lisboa, o Mundo que escolheu a cidade para viver e trabalhar está aqui para as curvas, às vezes à  vista de todos e demarcando territórios que por vezes os torna mais abertos porque os estrangeiros de Lisboa já são em número de monta para se cuidarem uns aos outros e muitos há que recusam ser guardiães da exclusividade. Multiculturalismo, sim senhor, mas há comunidades mais omnipresentes que outras, quase sempre baseadas nas áreas da restauração ou do comércio de bens de consumo mais ou menos essencial. Indianos, africanos, asiáticos, brasileiros, hispano-americanos, os vindos do Norte e os chegados do Sul estão a dar novos mundos a Lisboa. E com essa mistura de gente, ideias, crenças e culturas a cidade se renova. Toda ela, mas é nesta língua de terreno que leva do Largo de São Domingos ao Intendente (com excepções que só confirmam a regra, como o friso de restaurantes chineses nas envolventes da Avenida Duque de Loulé a começar pelo portentoso O Chinês Clandestino) que melhor se apercebe o Mundo que veio aportar a Lisboa para ficar. Restaurantes, bares, novos hotéis, uma profusão de edifícios abandonados ou devolutos que se preparam para continuar como que em ‘upgrade’ essa Lisboa que o Mundo de fora apoia e ajuda a sustentar, as associações culturais em plena força criativa (o Ó Galeria, ao Martim Moniz, o SOU, aos Anjos ou a Casa Independente/Ironia Tropical, ao Intendente), tudo aponta para uma Lisboa que recusa ficar a mando dos turistas e antes escolhe viver das misturas de comunidades.

E, com o tempo, talvez Lisboa caminhe para uma omnicultura onde quem vem de fora e quem nunca sai de dentro começa por aprender o que ambos têm em comum. Para começo de conversa. E muitos acreditam que a capital portuguesa está já pronta a dar lições sobre o assunto, até porque a forma como diferentes fatias do mundo se integram e interagem se está a tornar uma mais-valia turística, a trazer gente em visita que descobre que Lisboa é única bem para lá da luz e do very typical, um modelo de sociedade integrada e, ao mesmo tempo, soberana e orgulhosamente independente. Mudam as lojas e os conceitos, mudam os hotéis onde nem todo o charme tem de sair caro, comércio onde nem tudo o que é barato tem de avariar ao primeiro uso, novos públicos modernos e alternativos, restaurantes que brotam como especiarias e, acima do resto, o diálogo aberto, sem pingo de intolerância ou violência, com um mundo quase sempre ancestral nas origens e contemporâneo nos anseios que escolheu Lisboa para viver e labutar como uma casa aberta ao mundo. Uma cidade real, à escala planetária e que deixou de caber em postais.

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