BREVE HISTÓRIA DA LISBOA BOÉMIA

Em 1900 a vida de boémia até passava por ideal artístico, mas de Lisboa a Cascais o tempo consagrou-a como uma existência noturna, feita de bares e discotecas, restaurantes fora de horas e casas de fado.

OS VELHOS BOÉMIOS

Fernando Pessoa, Martinho da Arcada, Terreiro do Paço

No início do século XX aos finais dos anos 20, a noite de Lisboa era indissociável dos seus teatros, do drama à comédia, da opereta (ainda muito popular nessas décadas) ao teatro de revista cujo Parque Mayer abre ao público em 1922 prometendo ‘um teatro, um carroussel e uma esplanada’. Nos cafés reinam os modernistas sempre espreitados pelo público curioso de conhecer os ‘malucos da revista Orpheu’ (Fernando Pessoa, Almada-Negreiros, Santa Rita Pintor ou Mário de Sá Carneiro). A Brasileira do Chiado é uma das suas paragens obrigatórias e ainda hoje, pela manhã, por lá se reúne a última das tertúlias de artistas e café. Mas é também a época de cabarets, da versão possível dos ‘loucos anos 20’ americanos, da era do jazz band’, como lhe chamavam, com o Palácio Foz a dar as cartas e o swing. Um dito de Fernando Pessoa marca a época: ‘Nunca fui mais do que um boémio isolado; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível’.

A BOÉMIA DO FADO

Alfredo Marceneiro, Alfama

O fado reina supremo ao longo das décadas de 30, 40 e 50 do século XX. Não se tomam por típicas as tabernas do fado vadio, antes cresce o número de casas de fado a dar a ouvir a ‘canção nacional’, todas incluindo óptimos restaurantes, a fechar tarde e a reunir novas tertúlias, em especial as compostas por gentes de teatro vinda depois de acabada a récita ou todo o género de artista e intelectual a quem abundava em inspiração o que lhe faltava em sono. Para ter um pouco de tudo sem ter nada contra o fado, a lisboeta Praça da Alegria brilhava em tripartidos prazeres, entre o Maxime, o Ritz Club e o Hot Club de Portugal que abriu portas em 1948. A boémia do fado, essa mudou de vez à medida que os turistas tomaram o lugar das tertúlias. Ainda se ouve fado genuíno e algumas casas de fado conseguem manter uma dignidade assinalável, mas os fadistas de eleição trocaram o seu primeiro ‘ninho’ pelas grandes salas de espetáculo ou festivais. De vez em quando, mesmo assim, lá ecoa uma nova e fresca voz fadista.

A BOÉMIA VAI A BANHOS A CASCAIS E ESTORIL

Dos anos 1970 à década de 90, Cascais reafirma a sua fama enquanto destino de noite boémia. Fica no goto a geração dos ‘meninos de Cascais’, misto de pais endinheirados e miúdos que têm dinheiro para viajar, comprar discos e dançar até ser dia como se não existisse uma moda mais vibrante. Na zona da Costa do Sol repetem-se os nomes que levam os locais a não parar em casa e os lisboetas a seguir Marginal fora em direção à boémia: Van Gogo, Palm Beach, Coconuts, o Jet 7 na Malveira e a ‘catedral’ indiscutível, o 2001, que abre portas em Outubro de 1973 junto ao Autódromo do Estoril. As novas décadas fazem mais do mesmo, com novos nomes e lugares e diferentes conceitos do que deve ser uma noite de boémia. O Estoril acolhe o pequeno KGB (de Paulo Nery) e Cascais recebe o primeiro clube de Jazz – Luisiana – “oferecido” pelo pai do jazz em Portugal, Luís Villas-Boas, também criador, em 1971, do festival Cascais Jazz.

OS ALTERNATIVOS ANOS 80

Entrada do Frágil, Bairro Alto

É a década do rock alternativo e do Bairro Alto, do Frágil, de Manuel Reis, um espaço onde parecia caber toda a comunidade criativa de Lisboa, onde as modas nunca ficavam muito tempo sem se alterar, onde gente como Zé da Guiné, António Variações ou Ana Salazar ditavam regras e atitudes. E a cidade estava atolada em espaços excitantes e diferentes entre si, em Dezembro de 1980 abre o Rock Rendez-Vous, lugar de culto da música pop-rock e rock alternativo português até 1990. Com a massificação da noite, os pequenos clubes dão lugar às primeiras grandes discotecas de Lisboa, o Plateau, o Alcântara-Mar e o Kremlin. A vida boémia segue assim ao longo dos anos 90 e saúda o novo século, à medida que as tertúlias se vão confinando a espaços que são só seus como o Botequim de Natália Correia à Graça ou bares como o Procópio e o Snob, preferidos dos jornalistas, classe sem a qual a boémia de Lisboa não se escreve ao tempo em que as gentes da imprensa eram tão relatores quanto protagonistas da vida noturna.

OS BOÉMIOS DO SÉCULO XXI

Lux Frágil, Santa Apolónia

O Lux Frágil de Manuel Reis abre portas em 1998 e passados 20 anos é ainda a melhor discoteca de Lisboa. É um ponto alto na diversidade boémia e na sua própria geografia, instalado na zona de Santa Apolónia em ano de Expo universal. Imperam os DJs e a música eletrónica é um trunfo da noite à medida que os horários de fecho de bares e discotecas se prolongam para além do nascer do sol.
O antigo B.leza, templo da dança e música Africana, deixa o charmoso palácio do largo Conde Barão e muda-se para a beira-rio ao Cais do Sodré. Manuel João Vieira abraça a causa boémia no mítico Cabaret Máxime dos anos 40 e mantém este espaço noturno lisboeta aberto com uma programação cultural até ao seu encerramento em 2011. Hoje o velho Máxime é projeto de hotel, mas Manuel João Vieira trouxe à tona o anterior conceito, batizado de Titanic Sur Mer e ancorado no Cais do Sodré.
Entre os sobreviventes intocados destacam-se o bar-museu Pavilhão Chinês e o bar-discoteca Incógnito, talvez o único onde ainda se dança ao som de uma certa música alternativa.

Titanic Sur Mer, Cais do Sodré

 MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE OS BOÉMIOS

O Bairro Alto enquanto epicentro da vida da noite lisboeta massifica-se à exaustão nos primeiros anos do novo século. Uma nova lei dita que os espaços noturnos devem encerrar às 2h, em vez das 4h da manhã habituais fora o que continua a pulsar depois de fechada a porta. O Cais do Sodré, que passara de um ‘mood’ de prostituição e marinhagem para uma busca de novos e alternativos caminhos, não presta atenção à obrigação horária e acolhe todos os que descem a Rua do Alecrim. Junta agora aos velhos e coloridos antros (Viking, Europa e os demais sempre com nomes de lugares portuários como o Jamaica, Tóquio, Liverpool, Roterdão, Copenhagen…) toda uma panóplia de novos lugares, vibrantes e atrevidos cada um à sua maneira. Music Box, Titanic sur Mer, Rive Rouge passam por paragens obrigatórias, mas as multidões parecem ir parar compulsivamente na Rua Cor de Rosa que para lá dos muitos bares e esplanadas tem o seu maior trunfo no charmoso bar da Pensão Amor. O espaço que leva dessa rua à Praça de São Paulo tem sido tomado como exemplo da invasão de turistas e de visitantes nacionais que trazem consigo o pior dos perigos da boémia: o sucesso que dá lugar à infelicidade e à mais descaracterizada massificação. E de ser tão repetitivo e ter tão pouco do apelo lisboeta, é de perguntar se o negócio terá pernas para andar ou passa de moda sem avisar.

Do Cais do Sodré ao LX Factory a Alcântara, há ainda alguns lugares de boémia que recusam o entorpecimento alcoolizado ou o vandalismo sanitário. Lugares que tentam manter uma identidade que ligue o cliente ao lugar, os bons vinhos e petiscos portugueses à melhor música que se faz mundo fora, as sustentáveis pistas de dança ao convívio que é da função de quem convive tornar ao mesmo tempo exaltante e confortável, terreiro de amigos e recanto de intimidade. A certeza é que tudo isso não dura para sempre. E há quem o perceba a tempo. Enquanto o Cais do Sodré pulsa aos saltos e o Bairro Alto se reinventa sob as tendências dos novos tempos, a noite boémia de Lisboa faz-se agora em terraços e rooftops, abraça a causa das associações culturais, do Largo do Intendente à Fábrica do Braça de Prata a Marvila. Não é que os boémios lisboetas andem em fuga. Estão apenas a encontrar coisas novas e a garantir que ninguém as estraga ou arruína.

 

ROTEIRO DA LISBOA BOÉMIA

Fomos à procura dessa cidade que mudou e onde a boémia busca novos caminhos. Os melhores lugares onde viver no que fica aberto até muito tarde. E veja os três artigos que deixamos em baixo, dedicados aos restaurantes fora de horas, à noite e ao fado.

Restaurantes fora de horas em Lisboa e Cascais

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60 bons motivos para sair à noite em Lisboa

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As incontornáveis Casas de Fado

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